As traduções do versículo 22 do capítulo 6 de São Mateus trazem a seguinte frase:
“São os olhos a lâmpada do corpo. Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo será luminoso;”
Outra tradução diz assim:
“A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz.”
Notamos que há variações em dois pontos principais nessas duas traduções: a primeira delas utiliza a palavra “lâmpada” e a segunda “candeia”. Quanto a isso, há pouca diferença, uma vez que tanto um objeto quanto o outro se refere àquelas antigas lanternas ou lâmpadas, com a diferença de uma poder ser portada e a outra, a candeia, ficar dependurada que fica sempre no alto.
Depois, a segunda diferença que nos aparece é em “teu corpo será luminoso” e “todo teu corpo terá luz”. Lembremos que Jesus cria uma analogia entre a lâmpada em seu ambiente, o que pode ser um quarto, e os olhos com relação ao corpo, que seria este quarto a ser iluminado. A primeira tradução parece nos dar a ideia de que o nosso corpo espalhará luz e a segunda, de que nosso corpo, assim como um quarto, passará a ter luz, ficando iluminado.
Ainda há outros pontos interessantes entre essas duas traduções, pois as duas dizem “se teus olhos forem bons”. Isso nos leva a crer que o texto original traga palavras de mesmo sentido. Então, recortados esses pontos, vejamos quais palavras o texto grego original e sua tradução latina da neovulgata realmente utilizam!
Ὁ λύχνος τοῦ σώματός ἐστιν ὁ ὀφθαλμός. ἐὰν οὖν ἦ ὁ ὀφθαλμός σου ἁπλοῦς, ὅλον
(Ho luchnos tu sômatós estin ho oftalmós. eán un é ho oftalmós su haplus, holon)
τὸ σῶμά σου φωτεινὀν ἔσται.
(to soma su foteinon estai)
Lucerna corporis est oculus. Si ergo fuerit oculus tuus simplex, totum corpus tuum lucidum erit.
Primeiro de tudo, notamos que “lâmpada” e “candeia” vem de “λύχνος”, como “lucerna”. Não há nada muito especial a se diferenciar entre os dois substantivos. Embora não possamos esquecer que estamos falando de um “lâmpada” antiga, daquelas que se abastecia com óleo, assim como na parábola das virgens, que buscam óleo para suas lâmpadas.
O “corpo luminoso” ou “corpo que tem luz” está escrito originalmente ὅλον τὸ σῶμά σου φωτεινὀν ἔσται (holon to soma su foteinon estai), cujo sentido literal é: todo o teu corpo estará iluminado/reluzente/claro/esclarecido. A palavra “φωτεινὀν” (foteinon), um adjetivo, em certa conotação grega, ainda pode dar o sentido de “esclarecer o entendimento e a inteligência”. Em latim, inclusive, temos o adjetivo “lucidum”, do qual temos “lúcido”. Isso resulta em “teu corpo será lúcido”. Por analogia dizemos ainda hoje “mente lúcida”, ou “aquele homem é muito lúcido”, certamente esses usos partem dessa mesma analogia.
Deixo para falar, por fim, sobre o adjetivo dos olhos: bons. “Se teus olhos forem bons”, escrevem as duas traduções. Em grego temos “ὀφθαλμός ἁπλοῦς” (oftalmós haplús) e em latim “oculus simplex”, ambas as palavras em latim e grego dão o sentido de “olhos simples” ou “puros” ou “sem mistura”.
Embora se entenda que ter olhos puros é tê-los “bons” ou que o bom olhar é puro e simples, procuremos compreender que há uma certa distância semântica muito maior das traduções portuguesas com relação ao latim e ao grego, enquanto não há entre as duas línguas antigas. O que acontece é que escrever “simples” ou “puros” não daria todo o sentido que encontramos nas línguas antigas, ao ponto de outras traduções trazerem “olhos humildes”, o que é mais estranho ainda e, ao meu ver, uma escolha bastante ruim, uma vez que ‘humildade’ tem um sentido mais carregado da ideia de modéstia e consciência do próprio valor como ser humano, do que a ideia de desejo e busca na expressão dos olhos, algo que fazem o tempo todo.
Os olhos, como algo que expressa o que está na “mente” e nos “afetos”, se não forem “simples, puros ou sinceros”, possuem segundas intenções, escondem ou carregam “pensamentos” consigo. Quantas vezes não observamos um olhar “dúbio”, como se expressassem duas ou mais coisas ao mesmo tempo, escondendo ódio, raiva, vingança, desconfiança e tantos outros sentimentos?
Em certo sentido, o olhar simples é bom. Sabemos ainda que a ideia de um “bom olhar” pode fazer-nos entender isso como “olhar bonzinho”, pois quando imaginamos ou alternamos o sentido real da tradução com “olhos bondosos” lembramos facilmente de olhares de imagens e representações com “bom olhar”. Creio que o sentido bíblico vá além disso, vá além dessa ideia de estar sempre imitando olhares de inocência. Desse modo, é fácil perceber a dificuldade de traduzir do grego ou do latim para o português e o quanto a nossa língua não alcança facilmente a profundidade do sentido das línguas antigas.
Notamos, com tudo isso, que a tarefa de ler os evangelhos requer certo cuidado. Mesmo que tenhamos o texto original em grego e a tradução latina, precisamos meditar o sentido das palavras. Trabalhar para encontrar o sentido de cada uma delas não é apenas trabalho para os hermeneutas ou teólogos, mas também ao leitor sério. A linguagem, em grego, é simbólica e abstrata, porque as palavras e analogias não indicam apenas uma situação particular, mas estados e fenômenos que se traduzem em diversas atitudes e entendimentos. Espelhando os textos, é fácil perceber a importância do trabalho dos sacerdotes, ao explicarem as escrituras nas missas, o que nos pede algo além de buscar os sentidos precisos em nossas traduções. Por mais que nos ajudem, muitas vezes carecem de profundidade ou a nossa própria língua se torna insuficiente para traduzir em certas situações.