Logo depois que Cristo diz aos discípulos que o olho e a lanterna ou lâmpada do corpo e, que se os olhos forem simples e bons, todo o corpo será iluminado, seque o discurso dizendo o famoso lema do versículo 24 de Mateus, “Ninguém pode servir a dois senhores”.
A conexão entre essas duas partes pode ser melhor entendida quando percebemos que os olhos expressam e apontam aquilo que desejamos, se forem duplos, não forem simples, também não serão bons e o corpo recairá na escuridão. É possível notar que, nas palavras de Cristo, querer ou mesmo desejar, mirar o que é bom com os olhos, já é servir. Nisso, nota-se que os olhos acabarão por olhar para apenas uma das duas direções.
Mas o que há por trás das palavras desse versículo? Como o evangelho original em grego antigo e a neovulgata trazem essas palavras? Há diferenças?
Segue a tradução mais comum em português:
Ninguém pode servir a dois senhores: pois, ou odiará a um e amará o outro, ou será leal a um e desprezará o outro; não podeis servir a Deus e às riquezas.
Como lemos o mesmo em latim:
Nemo potest duobus dominis servire: aut enim unum odio habebit et alterum diliget, aut unum sustinebit et alterum contemnet; non potestis Deo servire et mammonae.
Em grego temos assim:
Ὀυδεὶς δύναται δυσὶ κυρίοις δουλεύειν· ἤ γὰρ τὸν ἕνα μισήσει καὶ τὸν ἕτερον άγαπήσει
(udeis dúnatai dusi kyriois duleuein: é gar ton ena misései kai ton heteron agapései)
ἤ ἑνὀς ἀνθέξεται καὶ τοῦ ἑτέρου καταφρονήσει· οὐ δύνασθε θεῷ δουλεύειν καὶ μαμωνᾷ.
(é henos antheksetai kai tu hetéru katafronései: u dýnasthe theô dukeuein kai mamôná)
A primeira coisa que precisamos saber é que do grego para o latim temos uma tradução bastante literal, mesmo nas palavras mais importantes, cuja forma é muito semelhante e estão no cerne da mensagem, o “amar” e “odiar”, contudo uma delas é um pouco diferente em suas raízes, o que é o caso de “contemnere”.
μισήσει, odio habebit
O verbo que aqui está no futuro “μισήσει” significa realmente “odiar”. Em latim, embora exista o verbo ‘odiar’ que tem forma sempre de tempo perfeito, mas com valor de tempo presente, “odi”, não é usado no futuro. Então se traduziu como “ter com ódio”. Em português teremos “odiará”.
άγαπήσει, diliget
Do mesmo modo, os verbos estão no tempo futuro, os dois significam “amar”. A palavra em grego vem de uma raiz que expressa “maravilhamento”. “Diligere” vem do radical “lego” em latim, significando o ato de “selecionar”, “eleger”, “tomar para si”. Em grego a palavra vai de encontro a ideia de maravilhar-se por alguém, em latim, de escolher, eleger alguém para si.
ἀνθέξεται, sustinebit
Em “antheksetai” a palvra vem de “sustentar com a mão”, “posicionar a mão contra algo”. Em grego “mão” é “Cheir”. A palavra latina nos dá uma imagem muito semelhante, com a união de “subs” ou “sub” e “tenere”, o mesmo que “ter”, “segurar” por baixo. Em português foi traduzido por “será leal”, “será fiel”, no sentido de “aderir”. Este “sustentar” não traria em português a mesma conotação do latim e do grego, seria difícil entender a mensagem e não faria sentido de imediato, mas em latim e grego a palavra quer dizer justamente “ajudar”, “servir no que for necessário ao outro”.
καταφρονήσει, contemnet
Em “katafronései”, temos o sentido de “pensar” de “froneo” e da preposição “katá” juntos na mesma palavra: “pensar mal”, “querer mal”, “estimar por baixo”. E “contemno” dá o sentido de “afastar-se, criando uma divisão”, pois “temno” vem justamente de “temno”, da mesma raiz grega, significando corte, divisão. Em português, temos “desprezar”, o que dá o sentido de “não ter estima”, “não prezar por”. Lembremos que “prezar” vem de “pretio”, donde temos também “preço” em português. “Desprezar” é “dar pouco preço ou valor a algo”.
Quanto a essas palavras, o que mais chama a atenção é como uma complementa o sentido da outra: em grego se tem o ato de “querer pouco”, “pensar mal de alguém”. Em latim temos o sentido do “afastamento”, da “divisão” e, em português, temos “dar pouco valor”.
Anotadas essas diferenças, conseguimos perceber que, nas palavras bíblicas, odiar e amar expressarão desejos ou vontades opostas, em primeiro lugar, para depois descobrirmos os seus efeitos. Com relação a quem se ama, tem diligência, se aproximará dele, se aderirá a ele, iniciando uma fidelidade e um compromisso com esse senhor. Por outro lado, com relação àquele a quem se odiará, acabará desejando o mal, se afastará, romperá as ligações, estimará por baixo.
Notem que, sobrepondo os sentidos dessas palavras, com seus devidos valores em cada uma de suas línguas, podemos até mesmo imaginar ou montar um processo nas duas direções, com as suas fases, desde uma má decisão, um mau olhar, até o afastamento e a rejeição completa de um dos senhores!